domingo, 7 de janeiro de 2024

Os mares

não saio desta vida sem escrever um último poema,

deste pecado estou absorta,

ainda que nas praias que tenha frequentado

não tenha mergulhado

e o que é uma ironia,

como tantas outras,

pois de cabeça entro em tudo. 

vejo tudo o que é profundo,

me reflito,

esses poemas se fossem lançados ao mar

teriam maior destino...

não que seja esse poema um discurso

existencial dos profundos,

mas eu merecia o buraco

cavado com as unhas 

em sua mais perfeita natureza,

eu merecia um poema que não reivindicasse

nada além do desejo

de ser um pouco mais de palavras

escavadas, 

merecia um poeta que fosse além

do que o Mediterrâneo, Pacífico, Índico 

e do próprio mistério

porque já estou escassa daquilo o que além 

do mar exista um infinito. 

sábado, 13 de agosto de 2022

com você eu sinto o desejo

com você eu sinto o desejo
de nunca terminar um poema

de nunca começar um poema

você que opera as palavras
o lugar na estante
em que colore os corações

por você eu deserdaria a palavra
para habitar o silêncio:
teu corpo de estátua ao meu lado

há de existir algum verso
no qual nós além de remoer 

sejamos parte de uma oração  

domingo, 6 de fevereiro de 2022

laço

o teu nome no meu poema
faíscas e esboço

você com o teu jeito 
de desbravar o meu pescoço,

me roço
nos nós. 

e o teu dedo solto

quem diria que o anel, o teu mel
cairiam tão fantasmagóricos

teu gozo cheiro de lágrimas,

as palavras que eu insisto
em não saber dizer por onde 

como nos discernir, improviso 
o teu rosto o meu umbigo

laço a tua presença, 

nos roço
em nós. 

quarta-feira, 26 de abril de 2017

brisa

já sentiu o cheiro
da tarde brotando?

o tranco do motor
no trânsito o céu
num flash se vê
o cardume lânguido
dos pássaros 
afinde achar
lá longe
uma florinha fincada
no asfalto
suja de lama
no vão do salto

as vezes a gente expressa
e não diz é que desacredita,
se palavra toda solta
fosse ao menos revolução

no mais,
o cachorrinho caminha
sorriso língua nervosa
o chão é perigoso
as quedas,
só olhar pra frente,
tem gente,
e me olha como se fosse bicho,
o cão

A gente nem olha,
desvia,
sente sente mas vê,
falta sentido

ah é que bate uma nostalgia
imagem de infância
segurar nuvem
na mão,
e devagar a roupa bate
no corpo,
de tão forte que é o vento
gostoso vindo depressa

sabor de deserto na boca
olhos e água mais sal do Brasil,
desacredita,
tem cheiro pra todo lado
vindo de fora!

não quero falar
como se a gente fosse tudo
mas tudo não passa
de um pouco da gente,
e segue tão cabisbaixo
só vê as durezas do chão,
ali se vê mais pedra,
que pedra!

reluz no ponto
mais indecente
lá da frente,
aponta
cheiro de fim.

É lá que a estrela
tá gemendo de gosto da noite,
muda direção a estação,
mal olha pra cá
gingado as flores
brotando
muita arte das cores,
quanta pintura!

acho que o céu
piscou pra mim

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Rapunzel de neve

Anoitece um frio de névoa
Ela sorri com os lábios ressecados
Cada lacuna é um labirinto de sangue
E minha saliva inunda esse mistério

O chá borbulha fazendo som burlesco
Sem açúcar
Ela quer emagrecer
E deixa a vida mais amarga

Os seus cabelos estão pesados de sono
E os olhos carregam marcas
Marcas escuras como as que
Leva na bagagem

O inverno amanheceu mais cedo
Não quer deixá-la sair
E ela faz desse frio uma cruz
Pesada e tristonha

Seus dedos mórbidos tocam uma harpa
O amor sai fervendo das narinas
E na cama retorce o corpo
Abraçando aquilo que entra pela fresta da janela
É a depressão com perfume de primavera

Desenhando pôr-do-sol

Foi preciso poesia pra ficar inerte
de um vazio que parece fome,
e foi bastante até cansar poeta

Precisou de flores pra fazer perfume
em uma cidade cor-de-prata, pouco rico,
muito usurpado de fumaça
e espirais de poluição pessoal

Com páprica e torta de maçã o que era amargo
virou beija-flor, sedento e eufórico,
docinho, para suportar um pôr-do-sol sem chorar
(pois o choro vinha salgado)

E com arte moldou-se um abraço calejado
se desenhando e dançando por entre dedos finos
com bolhas de tanto uso
e tentativas frustadas de forjar amor,
o amor existiu porém não dura mais que horas

Quem não sabe fazer arte desiste
vivendo só de esmola

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Hoje sonhei poesia

Hoje eu sonhei com seus olhos
e a cor desse mundo insano não fazia sentido,
através da vidraça de sua íris furta-cor
eu refleti os meus erros cotidianos
e padeço pelo vácuo de vida deixada para trás
à ponta pés gastos

No meu sonho a realidade pulsou teus lábios
procurando pelo grito de amor
mas as amídalas rompidas de medo
impediram a voz embargada
de rasgar o silêncio

Eu tive medo de acordar
mas eu despertei por culpa dos automóveis
que correm em busca de um abrigo,
e quando fecho os olhos
o escuro amedronta meus devaneios
enquanto a insônia canta um choro
intacto de solidão

Hoje eu sonhei
e ao acordar quero morrer dormindo
para tocar suas maçãs rosadas e alimentar-me
de uma ilusão doce,
quero morrer e esquecer das lembranças
que martelam essa alma cansada de sofrer

No meu sonho eu tentei amá-lo
e consegui tão profundamente que acordada
esse calor chamusca as vértebras
desse corpo machucado,
quero viver esse sonho interrompido
pela eternidade de uma lágrima

Hoje as memórias estão doloridas
e frígidas feito gelo,
vivo-te todas as noites sonhando
pra deixar de sofrer a realidade de te ter
somente dentro do papel borrado
de um vazio sentenciado de saudade